La Paz, 25 de setembro de 2003.
Na Bolívia, no coração da América morena, está acontecendo a maior batalha contra o neoliberalismo e as transnacionais. Camponeses, mineradores, trabalhadores, estudantes, aposentados, comerciantes e desempregados virtualmente se mobilizaram para renacionalizar a indústria petroleira e suas riquezas ingentes de gás e petróleo.
A rebelião vem de baixo e já pôs em xeque o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, que carece de apoio popular (menos de 9% segundo as pesquisas) e só tem como respaldo forte o exército e a embaixada dos Estados Unidos. A convulsão social está aumentando. Nos pampas do Altiplano, militares e camponeses brigam para controlar as principais ruas, enquanto que em La Paz, a sede do governo, acontecem marchas e manifestações contrárias ao regime neoliberal. Nos sindicatos há intensos preparativos para impor uma greve geral indefinida, a partir de segunda-feira, assim como o bloqueio nacional de ruas. A tática popular é fechar os caminhos e marchar até as cidades, especialmente a La Paz, onde se decidiria a sorte do conflito.
GONI CEDE OU CAI
"Se Sánchez de Lozada não atende nossas demandas, deve ir embora", adverte o principal dirigente da Central Obrera Boliviana (COB), o minerador Jaime Solares, que junto aos setores camponeses e às organizações sociais e populares cada vez mais radicalizadas como o Movimento ao Socialismo (MAS) do cocaleiro Evo Morales, formou uma direção única das mobilizações, a Coordenadoria e defesa do gás.
O objetivo dos mobilizados é claro e aposta convulsionar paulatinamente a Bolívia até conseguir a renacionalização da indústria petroleira ou, não conseguindo isso, a queda de Sánchez de Lozada, um milionário que fez fortuna nas minas de Oruro e Potosí, as regiões mais pobres e depauperadas da Bolívia. Segundo o cálculo da Coordenadoria, a pressão popular obrigaria o presidente a anular o projeto de exportação de gás aos Estados Unidos, impulsionado pelo consórcio transnacional de Pacific LNG, conformado por Repsol YPF, British Gas e Panamerican Gas, subsidiária esta última da British Petroleum. Este projeto, como disse um de seus impulsores, o presidente da British Gas, Edward Miller, trará um ingresso anual de mais de 1 300 milhões de dólares, enquanto que para o Estado boliviano ficará somente entre 40 a 70 milhões de dólares em impostos e regalias.
Estas enormes diferenças são produto da desnacionalização da indústria petroleira decretada pelos governos neoliberais, que se sucedem no poder na Bolívia desde 1985. Mas foi o próprio Sánchez de Lozada, que gosta que o chamem pelo sobrenome Goni, quem transferiu a propriedade de hidrocarbonetos às transnacionais, no dia 4 de agosto de 1997, dois dias antes de culminar o seu primeiro mandato presidencial, mediante um decreto secreto e ilegal, que foi considerado inconstitucional ante o tribunal Constitucional.
A GUERRA PELO GÁS
Graças a este decreto, as transnacionais que operam na Bolívia se apoderaram das reservas de gás do país, que chegam a 52 trilhões de pés cúbicos, a segunda mais importante da América do Sul e avaliada atualmente em pelo menos 80 milhões de dólares.
Sob o controle das petroleiras estranjeiras, esta riqueza só tem servido para multiplicar os rendimentos das transnacionais, com escassos e imperceptíveis benefícios para os bolivianos, que acreditam que se voltarem a ser proprietários dessas reservas podem industrializar o país e melhorar suas precárias condições de vida e de trabalho.
"O gás é a última oportunidade que temos para sair do atraso", assegurou Solares da COB, quem, diferentemente dos outros membros da Coordenadoria, pensa que Goni não cederá neste tema, porque os trabalhadores não teriam outra opção de derrubá-lo.
ENTRE A BALA E A PAZ
Esta possibilidade também é avaliada pelas próprias autoridades, que acusaram a COB, ao MAS de Evo Morales e a Coordenadoria de estar "conspirando contra a democracia". No Executivo há duas tendências: uma, a militarista, que pretende acabar de imediato a bala com a revolta popular e outra, a do diálogo, que fala em fazer concessões parciais aos setores populares, mas preservando a presidência de Sánchez de Lozada e o que mais se possa dos negócios petroleiros.
Goni está entre as duas tendências. Primeiro se inclinou pela opção militarista, mas ao desencadear-se no sábado passado o massacre em Warisata com um saldo de sete mortos e mais de vinte feridos, mudou para a segunda saída, pelo menos temporariamente até que se dissipe a revolta popular por causa do massacre.
No oficialismo, todavia, há enorme desconfiança sobre o manejo da crise. "Este parece um governo de autists, que só se preocupam no que passa dentro do Palácio e nada mais", se queixou a deputada oficialista Elsa Guevara, que como o resto dos parlamentares bolivianos, não tem uma participação relevante em um país onde os problemas, grandes e pequenos, se resolvem a golpes, a pedra ou a bala.
APOSTA POPULAR
Os sindicalistas também apostam conseguir grandes manifestações de massas para os primeiros dias de outubro, com a esperança de que possam fraturar a disciplina vertical do Exército e neutralizar sua capacidade de fogo.
A lealdade militar para com o governo neoliberal havia sidoposta em dúvida pelas próprias organizações trabalhadoras, que haviam convodaco tropas e oficiais do Exército para não permitir a exportação de gás aos Estados Unidos por portos chilenos, tal como foi definido pelas petroleiras que levam adiante o negócio. Entre os sindicalistas, se acredita que a derrota militar se a Bolívia sofreu contra o Chile em 1879, com a perda de territórios e a saída para o mar impediria que as Forças Armadas bolivianas fizessem uma "traição à pátria" e impusessem a bala e baioneta a venda de gás pelo porto chileno de Pastillos.
Nessas alturas, pesam na memória coletiva as recordações das jornadas de abril de 1952, quando um levante popular fraturou primeiro e destruiu depois o Exército, abrindo o caminho para a nacionalização das minas, a reforma agrária e o voto universal. Os sucessos dos dias 12 e 13 de fevereiro de 2003, quando as guarnições e regimentos policiais deram a volta e combateram ao lado do povo também tem seu peso, assim como os 33 mortos e os mais de 200 feridos a bala, que foram o saldo das jornadas de resistência contra o confisco de parte dos salários determinado pelo governo.
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