arquivos dos protestos globais
archives of global protests

Date: 5 Aug 2001
Oficial: movimeto social é crime no brasil

Brazilian's army secret documents were unmasked by a newspaper. In their content, the social movements are named "adverse forces", MST(landless peasent movement) is put together with organised crime and drug dealers and in same cases, the document says, they may be "extirpated". The documents states that "citizen's rights" may be broken to maintain public order.

We knew that, but now it is official.
The whole article below (only in portuguese).

leo


Documentos sigilosos comparam MST ao crime organizado e admitem até "eliminação" de adversários.

Jornal Folha de São Paulo

Documentos secretos obtidos pela Folha revelam: o Exército pratica, sob Fernando Henrique Cardoso, uma política de inteligência que classifica os movimentos sociais como "forças adversas" e admite "arranhar direitos dos cidadãos" em nome da manutenção da ordem pública. Nos arquivos do Exército, "movimentos populares como o MST" equiparam-se ao narcotráfico e ao crime organizado. São tratados como adversários que, em certas ocasiões, podem ser "eliminados". Os papéis confidenciais expõem, pela primeira vez desde a redemocratização do país, os subterrâneos da máquina de espionagem do Exército. São cartilhas, manuais, relatórios e até fichas de informantes e colaboradores. O material aniquila a tese de que a extinção do SNI (Serviço Nacional de Informações) daria lugar a um modelo de inteligência apartidário e submetido ao controle do Congresso. Alheio à curiosidade de deputados e senadores, o governo criou em 13 de junho de 1994, primeiro ano da gestão FHC, a Escola de Inteligência Militar do Exército, em Brasília. Foi o ápice de um processo de reformulação iniciado em 1992 e ainda em curso.

"Arbítrio necessário" A necessidade de modernização é reconhecida pelo próprio Exército que, em seus documentos, faz alusão a pressupostos que tornariam a mudança inevitável. Por exemplo: a "abertura política e a anistia", no cenário interno, e a "hegemonia dos Estados Unidos", na arena internacional. A Escola de Inteligência deveria reeducar velhos arapongas e formar espiões para os novos tempos. A Folha obteve a apostila do curso ministrado em setembro de 1997. No capítulo dedicado à análise dos "mecanismos jurídicos de ação contra a subversão", a apostila ministra lições contraditórias. Primeiro afirma que o Estado deve agir "sempre dentro da lei" na repressão às tentativas de "tomada do poder através de ações extralegais". Mais adiante, o mesmo texto diz que o "poder de polícia" tem como fundamentos "o bem público, a salvação pública e a ordem pública". E emenda: "Sabemos que, para atingir esses objetivos, é muitas vezes necessário até arranhar direitos dos cidadãos, numa espécie de arbítrio necessário. É nesse quadro que se inserem todas as atividades de defesa da segurança interna, integradas nos diversos órgãos, militares ou não, que cuidam da segurança".

"Mentira útil" O setor de inteligência do Exército elege a mentira como um dos principais métodos de espionagem. Chamam-na de "estória cobertura". E a definem assim: "Técnica que trata dos artifícios empregados para encobrir a identidade de pessoas e instalações, dissimular ações, com o objetivo de mascarar seus reais propósitos". Ou ainda: "Pode-se dizer que a estória cobertura é uma mentira útil, planejada, preparada e utilizada nas atividades operacionais". Para camuflar as operações de inteligência que executa, o Exército recorre a métodos tradicionais -a falsificação de documentos para os seus agentes, por exemplo. E não exclui a hipótese de alugar imóveis e até criar firmas fictícias. Entre os papéis manuseados pela reportagem, há documentos que demonstram como a teoria da impostura é levada à prática. Uma rotina no cotidiano das instalações que se ocupam das missões de inteligência do Exército. Uma dessas organizações opera em Marabá (PA). Está instalada numa área residencial do bairro de Nova Marabá. São dois lotes, cercados por muros altos. Num deles há apenas um canil, dois cães e uma área utilizada como estacionamento. Noutro, há uma casa. Um portão de ferro une os terrenos. Na frente da casa não há placas, letreiros ou faixas. Ali trabalham 12 pessoas. A quem pergunta, identificam-se como jornalistas. Cruzando-se o portão da frente chega-se a uma recepção. Sobre a mesa, um "Livro de Registro Diário" identifica o nome da empresa: "RP Free Lance", uma agência de notícias. Ou quase isso.

Repórter armado Sob o telhado da casa de Marabá, cedida ao Exército pela Eletronorte, funciona, na verdade, um OI (Órgão de Inteligência). Os "jornalistas" são agentes secretos. A agência de notícias é uma fraude. Folheando o "Livro de Registro Diário", fareja-se logo a falsidade. Ali está registrado o movimento diário do escritório. Tome-se, por exemplo, as anotações relativas a um plantão de final de semana de março passado. O cabeçalho do apontamento registra: "Recepção da RP Notícias, Redação de Marabá, plantão jornalístico de 11 para 12 de março de 2001 (domingo)". Segue-se uma enumeração de ocorrências. No item 10, lê-se: "Os jornalistas Gaúcho e Maranhão estão com o seguinte material para cobrir reportagem em Tucuruí: um revólver calibre 38, número FG 56039; 20 cartuchos calibre 38; uma máquina fotográfica digital com zoom e três disquetes; uma máquina fotográfica Pentax automática". O Exército conta hoje com sete "Companhias de Inteligência". Estão localizadas em Porto Alegre, Rio, São Paulo, Manaus, Recife, Campo Grande e Brasília. Cada companhia conta com um certo número de subsidiárias, chamadas de "grupos destacados". São 22 ao todo. O trabalho de espionagem mobiliza 541 pessoas, em sua maioria oficiais. De acordo com os papéis obtidos pela reportagem, o trabalho é financiado por uma contabilidade secreta. Os agentes atuam no Brasil e no exterior.

"Repelir e/ou eliminar" O sistema de arapongagem oficial não mede esforços para proteger os dados que coleciona. Cada unidade conta com um plano de proteção. O "plano de defesa" do escritório de Marabá, no Pará, é implacável. O documento define assim as "forças adversas" contra as quais se mobiliza: "São grupos, movimentos sociais, entidades e organizações não-governamentais e qualquer pessoa que não tenha a necessidade de conhecer o OI [Órgão de Inteligência", que provocam reflexos negativos para a segurança nacional [...". No momento atual, verificam-se exemplos dessas entidades no crime organizado, no narcotráfico e nos movimentos populares como o MST". O Exército trabalha com a hipótese de que tais grupos realizem "atos de sabotagem" contra suas instalações e que tentem obter documentos, armas e munição. Caso isso venha a ocorrer, recomenda aos agentes: "repelir e/ou eliminar a força adversa que tenha se infiltrado". O manual de procedimentos avisa ao "encarregado de material" que, nessas ocasiões, deve fornecer "armamento e munição a todos os integrantes do Órgão de Inteligência". O lote de papéis reservados do Exército veio à tona por acaso. O Ministério Público abriu no início de julho um inquérito para tentar localizar ossadas de pessoas mortas durante a guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974. Um grupo de procuradores vem colhendo depoimentos no sul do Pará, onde 69 militantes armados do PC do B foram massacrados por 3.202 oficiais e soldados do Exército entre 1972 e 1974. Um dos entrevistados avisou sobre a presença de agentes do Exército na região. Ele mencionou também a existência do escritório em Marabá. Munidos de ordem judicial e auxiliados pela Polícia Federal, os procuradores realizaram uma operação de busca e apreensão no escritório. Abriram um armário com esqueletos diferentes daqueles que procuravam.

"Informantes" contestam militares

A rede de supostos "informantes" e "colaboradores" do Exército é recrutada nos lugares mais insuspeitos: sindicatos, movimentos sociais, ONGs, escolas, câmaras e prefeituras, por exemplo. Os nomes e dados das fontes militares são conservados em documentos chamados de FAF (Ficha de Acompanhamento Fonte). A Folha obteve cópias de algumas fichas dos arquivos da unidade de inteligência do Exército em Marabá. Muitas contêm, além dos dados pessoais, a foto do "informante". Entre eles, está Rita de Cássia Azevedo Aguiar, advogada e professora de Rio Maria (PA). Rita dá aulas de história para alunos de segundo grau de uma escola estadual do Pará. Ela integra o Comitê Rio Maria, entidade de defesa dos direitos humanos. Segundo sua ficha, seria "colaboradora" do Exército desde maio de 2001. Ela nega com veemência. Rita diz ter sido procurada por duas pessoas que se identificaram como repórteres. Fizeram-lhe perguntas sobre o Comitê Rio Maria. Tiraram-lhe uma foto. "Suspeito que não fossem jornalistas", diz. "De qualquer maneira, não disse nada a eles." Raimundo Nonato do Carmo Silva, líder camponês de Tucuruí, também demonstrou surpresa ao ser informado de que fora fichado pelo Exército como "colaborador". "É maluquice", disse. "Estou agora mesmo me preparando para promover uma invasão de terras. Não conheço ninguém do Exército. Repilo a insinuação." Wiris Alves, funcionário público e secretário da Associação Comercial e Industrial de Rio Maria, não se mostrou menos indignado: "Isso é uma imensa tolice". Constam ainda da relação de informantes pessoas supostamente filiadas ao PT, jornalistas, um vice-prefeito, dois dirigentes do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), presidentes de sindicatos de trabalhadores rurais e de garimpeiros, advogados, um dono de cartório etc. A Folha não os nomina porque não conseguiu localizá-los.

Exército não fala sobre apreensão de documentos

O Exército se nega a comentar os episódios que envolvem a apreensão de documentos secretos em sua unidade de inteligência de Marabá (PA). Abriu um IPM (Inquérito Policial Militar) para apurar as circunstâncias que levaram o Ministério Público a solicitar à Justiça a operação que resultou no vazamento de seus papéis. Na última nota que enviou à Sucursal da Folha em Brasília, o Exército informou que o IPM correria em segredo de Justiça, o que impediria a instituição de se pronunciar sobre o assunto. Ontem, a Folha tentou, sem êxito, contatar o Ministério da Defesa, ao qual o Exército está subordinado. A reportagem deixou recado na assessoria de imprensa. Até a conclusão desta edição, não havia conseguido estabelecer contato. Na semana passada, o Exército divulgou duas notas. O primeiro documento, expedido pelo Centro de Comunicação Social do Exército em 24 de julho, relatou que o Exército mantinha atividades "cívico-sociais" no sul do Pará por meio da 23ª Brigada de Infantaria da Selva, mas descartou a existência de um escritório de inteligência em Marabá. No dia seguinte, o Exército divulgou nota sobre a apreensão de documentos, relatando que "o comandante militar da Amazônia determinou ao comandante da 23ª Brigada de Infantaria de Selva que instaurasse um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar a ocorrência de possíveis irregularidades na realização da operação para cumprimento da ordem judicial contra uma instalação sob jurisdição do Exército brasileiro e outras circunstâncias que envolvam o fato".

INTELIGÊNCIA MILITAR

Os 541 agentes são treinados para espionar jornais,empresas, sindicatos e autoridades públicas

Espiões do Exército vigiam até o governo
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ninguém está imune aos espiões do Exército. Plantados em todas as regiões do país, os órgãos militares de inteligência realizam espionagem política, econômica, empresarial e social. Agem dentro e fora do país. O Exército chega mesmo a classificar os jornais segundo a sua "posição partidária", "dependência do poder econômico" e "grau de influência exercido pelo governo". Editores e autores de textos jornalísticos são catalogados segundo "a personalidade" e as "relações pessoais" que mantêm.

Documentos confidenciais obtidos pela Folha expõem toda a engrenagem de preparação dos arapongas. Eles são treinados para monitorar de índios a "autoridades das unidades da Federação"; de ONGs (organizações não-governamentais) e sindicatos a empresas, do corpo de bombeiros às polícias Rodoviária, Civil, Militar e Federal.

A atividade de inteligência é apresentada nos documentos como "vital no cumprimento da missão constitucional do Exército". Evita que os comandantes militares sejam "surpreendidos em situações desvantajosas". As informações coletadas pela rede de espiões são compartilhadas com o restante do governo. Colaboram "para a formulação e acompanhamento de políticas".

"Gratificações"

Além de seus próprios agentes - 541 ao todo-, o Exército mantém uma malha de informantes. A apostila do "Curso Intermediário de Inteligência", ministrado em setembro de 1997, em plena administração Fernando Henrique Cardoso, ensina técnicas de recrutamento de colaboradores.

Admite-se inclusive a hipótese de que venham a ser brindados com "gratificações e recompensas". O dinheiro sai de uma contabilidade sigilosa. No momento, o Exército está tentando "ampliar redes de colaboradores". Todos os seus arquivos e fichários estão sendo "atualizados". Há uma "concentração de esforços na área de inteligência".

Parte-se do diagnóstico de que é preciso promover uma "adaptação à nova conjuntura, em particular a partir de 1990". Formaram-se "grupos de trabalho" para elaborar uma nova política de inteligência militar. Os integrantes desses grupos listaram várias alterações conjunturais.

"No cenário nacional: neutralização do movimento revolucionário, abertura política/anistia, a atual constituição federal, a extinção do SNI (...)". "No cenário internacional: desagregação do bloco soviético, fim do conflito ideológico Leste-Oeste, fim do movimento comunista internacional, hegemonia dos EUA, tendência à multipolaridade econômica, crescimento da importância dos organismos internacionais, os novos conceitos de soberania relativa e do dever de ingerência em face das questões transnacionais."

"Vietnã e Hugo Chávez"

A criação da "Escola de Inteligência Militar do Exército", em 1994, primeiro ano do tucanato no poder, compõe o esforço de "modernização" dos órgãos de inteligência. Os documentos obtidos pela reportagem traçam uma autocrítica do trabalho de bisbilhotagem oficial.

O sistema padecia, segundo o diagnóstico do Exército, de "falta de credibilidade". Havia "excesso de dados (lixo)". O "produto final" do trabalho de espionagem "não atendia à necessidade dos clientes", ou seja, o próprio Exército e os órgãos públicos que se servem de suas informações, entre eles a Presidência da República.

Daí o esforço para cooptar novos informantes e atualizar arquivos e fichários. A julgar pelo conteúdo dos papéis analisados pela Folha, a mobilização tem sido vã. Um exemplo: o Exército mantém um "banco de dados sobre ONGs". Ao lado de informações acerca da movimentação do MST, armazena dados sobre uma inexpressiva "Organização Gente da Terra". O conteúdo da ficha é o que se poderia tachar de lixo.

A organização foi constituída no último dia 28 de fevereiro, em uma reunião pública realizada na Câmara Municipal de Itaituba, no Estado do Pará. O Exército infiltrou olhos e ouvidos no encontro. Apurou que o "líder e idealista" da nova ONG é José Altino, "ex-presidente da extinta União dos Sindicatos dos Garimpeiros da Amazônia Legal".

Sob a tarja "reservado", os agentes preocuparam-se em anotar detalhes do discurso de Altino: "Citou a guerra do Vietnã e a ascensão do presidente venezuelano Hugo Chávez, destacando a possibilidade de trazer a Itaituba, para propagar a organização, oficiais generais da reserva do exército vietnamita e o próprio presidente da Venezuela".

"Luta armada"

A "modernização" parece não ter alcançado também a metodologia e a ideologia da nova política de inteligência militar. Conforme revelou a Folha em sua edição da última quinta-feira, os documentos confidenciais do Exército classificam os movimentos sociais como "forças adversas".

Os papéis dão especial realce ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), equiparado ao narcotráfico e ao crime organizado. Contemplam a hipótese de que, em certas ocasiões, militantes de tais organizações podem ser "eliminados". Os mesmos documentos admitem "arranhar direito dos cidadãos" em nome da manutenção da ordem pública.

O leque de temas que despertam a curiosidade da chamada "Segunda Seção" do Exército, nicho da estrutura militar voltado para as operações de inteligência, é vasto. Ao tratar dos movimentos sociais, os documentos afirmam que os agentes devem dedicar especial atenção às entidades que mantenham "ligações" com "os adeptos da luta armada".

Em relação às organizações policiais, investiga-lhes o "envolvimento com o narcotráfico, contrabando de armas e munições". Mais: checa a existência de focos de "descontentamento" que "possam conduzir a um estado de greve" nessas corporações.

A arapongagem do Exército dedica-se ainda a: coleta de dados sobre terras indígenas e ONGs que atuam nessas áreas; movimentos sindicais e o seu "modus operandi", grupos nacionais ou internacionais voltados para a defesa do meio ambiente etc. Elege também como prioridade a produção de "conhecimentos inerentes à área política e à área econômica".

"Operação Condor"

Submetidos a situações hipotéticas, os alunos dos cursos de inteligência do Exército são instados a elaborar planos de ação. Uma dessas situações envolve um caso de espionagem comercial. Os aprendizes de espião receberam a ordem de obter dados sobre uma empresa fictícia: a Jonatan Comércio e Importação Ltda, do Rio de Janeiro. Solicitaram-se os nomes dos sócios e dos clientes, a localização de filiais e o tipo de material importado pela empresa. Recorreu-se à mentira. A solução encontrada é reveladora quanto aos métodos de trabalho dos arapongas: decidiu-se que os agentes deveriam comparecer à empresa travestidos de fiscais do Ministério do Trabalho.

Um outro exercício foi batizado de "Operação Condor", uma inédita alusão à operação dos regimes militares sul-americanos que previa a caça a adversários políticos dentro e fora de suas fronteiras. É a primeira vez que vem à luz um documento oficial utilizando a expressão, jamais reconhecida pelo Exército.

A tarefa imposta aos espiões consiste em mapear os movimentos de um "fugitivo dos órgãos de segurança da Colômbia". Batizaram-no de Carlos Trujilo. Seria o responsável por uma gráfica instalada em Belo Horizonte, em cujas instalações teriam sido impressos "panfletos pregando a luta armada".

Os participantes do exercício dividiram-se em três grupos. À equipe Alfa coube "identificar, fotografar e acompanhar as atividades e os contatos de Carlos Trujillo". O time Beta responsabilizou-se pelas investigações em torno da gráfica suspeita. O outro grupo, Charlie, ficou de reserva, pronto a substituir os outros dois.

OUTRO LADO
Governo prepara resposta para a próxima semana
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Ministério da Defesa e o Exército continuam preferindo guardar silêncio sobre os documentos confidenciais que a Folha vem publicando desde quinta-feira. Surpreendido com o vazamento dos papéis, o governo prepara uma resposta, a ser dada na próxima semana.

Na última sexta-feira, o ministro Geraldo Quintão (Defesa) se reuniu com o presidente Fernando Henrique Cardoso, no Palácio do Planalto. Conversaram sobre os documentos, que vieram à luz graças a uma operação de busca e apreensão realizada no escritório de inteligência do Exército em Marabá (PA).

A ação foi motivada por um pedido do Ministério Público, acatado pela Justiça Federal no Pará. O MPF abriu no início de julho um inquérito para tentar esclarecer fatos ligados à guerrilha do Araguaia, que ocorreu no sul do Pará, nos anos 70.

Segundo apurou a Folha, Geraldo Quintão disse a FHC que preferia aguardar uma manifestação do Exército antes de dizer algo em público. O presidente assentiu. Quintão mostrou-se preocupado com a ausência do comandante do Exército, general Gleuber Vieira. A mulher do general, muito doente, levou-o a se distanciar de suas atividades nos últimos dias. Trocou Brasília pelo Rio de Janeiro.

Combinou-se que Quintão chamaria Gleuber para uma reunião no início desta semana. No encontro, tentariam construir um consenso acerca das explicações a serem dadas.

Mesmo nos diálogos reservados, Quintão mede cada palavra ao se referir ao assunto. Não quer melindrar o Exército. A preocupação do ministro é compartilhada pelo presidente. Reservadamente, FHC diz não ter dúvidas quanto à necessidade de um serviço militar de inteligência. Mas ficou aborrecido com alguns trechos dos documentos do Exército.

Dois pontos deixaram-no especialmente agastado: o trecho que classifica movimentos sociais como "forças adversas" e o que aventa a possibilidade de "arranhar direito dos cidadãos". (JS)

Manual ensina a seduzir informantes
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A inteligência do Exército sugere aos seus agentes a adoção de técnicas pouco ortodoxas de cooptação de informantes. A apostila do curso de treinamento de espiões apresenta como exemplo de "eficiência" um caso de recrutamento que começou no elevador e terminou na cama.

"O recrutamento de Trushenski", eis o nome dado ao episódio, descrito em papel timbrado do Exército, classificado de "confidencial". O cenário é a cidade de Roma. Não há menção a datas. O relato evoca o auge do conflito ideológico Leste-Oeste.

Espiões "do bloco ocidental" foram incumbidos de obter dados sobre "pessoal, organizações e agentes da KGB", o serviço secreto da então União Soviética. Optaram por cooptar Krystina Trushenski, secretária-datilógrafa do adido militar da embaixada polonesa em Roma, que fazia dobradinha com a KGB. O agente destacado, codinome Giacomo, colecionou informações sobre os hábitos de Krystina.

Amantes

Abordou-a várias vezes no elevador. Convidado ao apartamento dela, seduziu-a. Ela virou sua amante. Remunerando-a, obteve os dados de que necessitava. "Estava concluído, com eficiência, mais um recrutamento operacional", anota a apostila do curso intermediário de inteligência ministrado pelo Exército brasileiro.

Envolvido num esforço para tonificar o seu quadro de informantes, o Exército ensina aos seus agentes que o processo de arregimentação deve ser dividido em oito fases: 1) seleção de local e hora para a abordagem; 2) estudo do tipo de motivação que pode levar o alvo a tornar-se um informante; 3) elaboração de respostas para um possível questionamento; 4) fixação do preço a ser pago ao informante; 5) a forma de pagamento; 6) o preparo da orientação a ser dada; 7) escolha da data do próximo encontro; 8) elaboração de desculpa para contornar possível rejeição.

"Decálogo do vigilante"

Os espiões recebem também aulas de vigilância. São apresentados às regras de conduta do "decálogo do vigilante": a) não encarar o alvo; b) não andar de maneira suspeita; c) não andar se escondendo; d) não correr; e) não esquecer a distância conveniente; f) não se distrair; g) não cumprimentar conhecidos; h) não usar sinais visuais indevidos; i) não expor armas; j) não usar disfarces anormais ou exagerados.

Ministram-se ainda lições de "arrombamento com disfarce de intenção". A técnica é resumida assim: "Simular uma ação de forma a fazer o alvo pensar que o ato tenha sido praticado por marginais". Um ensinamento que serve também às potenciais vítimas de espionagem: o Exército proíbe que seus agentes utilizem fax e telefones (fixos ou celulares) para a transmissão de informações confidenciais.

(JOSIAS DE SOUZA)

NO PLANALTO
Tucanato nega ao Brasil o direito de conhecer um naco de sua história

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Se Fernando Henrique tivesse tomado posse, a guerrilha do Araguaia talvez já repousasse sobre uma página da história. Como um outro Cardoso se apossou da faixa presidencial, esse naco do passado continua trancado num cofre do Exército.

Se Fernando Henrique fosse o presidente, as família dos guerrilheiros talvez já dispusessem de suas porções de ossos e de uma lápide para depositar flores sobre os seus mortos. Como o outro Cardoso ocupou o Planalto, o Exército gasta dinheiro público numa operação para monitorar seus ex-colaboradores no Araguaia. Intimidando-os, impede que ajudem a localizar os esqueletos que intoxicam a historiografia nacional.

Morreram, como se sabe, cerca de 60 guerrilheiros. A maioria executada. Se Fernando Henrique estivesse dando as cartas, o Exército teria parado de fazer de conta que não houve guerrilha. Mas como o jogo é comandado por outro Cardoso, a sociedade é forçada a digerir a única versão disponível, a do PC do B, dono do monopólio do legado histórico.

O Ministério Público grava, há um mês, depoimentos de brasileiros que guardam na memória fragmentos do que houve. São palavras que ajudam a explicar o silêncio Exército.

O lavrador José Moraes Silva, portador da carteira de identidade 385 1074 (SSP-PPA), contou que seu pai, Francisco Barros da Silva, "ficou louco" em função do sofrimento que o Exército lhe impôs: "espancamento, fome, choques na cabeça e na boca". Foi "dependurado pelos testículos".

Margarida Ferreira Félix, moradora do número 30 da Travessa Brasispanha, em São Domingos do Araguaia (PA), disse ter presenciado a seguinte cena: o lavrador Pedro Carretel foi levado por soldados à presença da mulher dele, Joana. Pedro estava "travestido de mulher".

Tinha "as unhas dos pés e das mãos pintadas, batom nos lábios, sobrancelhas pintadas, sombra nos olhos, cabeça raspada e um círculo de esmalte vermelho na parte superior da cabeça". Pedro jamais foi visto depois desse encontro.

Maria Nazaré Ferreira Brito, identidade 288 2189 (SSP-PA), disse ter sido detida pelo Exército. Grávida de oito meses, levava outro filho, Mauro, no colo. Foi "obrigada a passar a noite sentada, tendo à sua frente uma cobra jibóia". Seu marido, Benedito Ferreira Fernandes Alves, foi levado de casa em 1973. Jamais voltou a vê-lo.

José Rufino Pinheiro, identidade 25 356 (SSP-PA), foi detido pelo Exército em Buriti (GO) e levado, "junto com mais 18" prisioneiros, para um quartel em Araguaína. Aplicaram-lhe "golpes de cassetete no estômago, no pescoço e na cabeça". Chamaram-no de "terrorista". José disse que se viu forçado a servir como "guia" do Exército na mata. Testemunhou a morte de vários guerrilheiros. Um deles, Osvaldão, "foi alvejado de costas, comendo macaxeira, sentado num tronco".

Sinésio Martins Ribeiro, identidade 55 300 (SSP-PA), ficou "preso num curral de arame farpado". Também virou "guia". Presenciou a morte de um sujeito que identificou como Ari. Ele não esboçou reação. Morto, teve "a cabeça cortada e levada para a base do Exército em Xambioá".

À cata dos depoimentos, os procuradores flagraram movimentos de agentes do Exército na região. Munido de autorização judicial, pescaram um lote de papéis num ninho de espionagem militar.

Se Fernando Henrique não estivesse sumido, desperdiçaria um naco de tempo com os efeitos da ação dos procuradores. O outro Cardoso, porém, silencia. E permite que o Exército se perca em movimentos heterodoxos.

Na última quarta-feira, o general Rui Monarca da Silveira, comandante da 23ª Brigada de Infantaria de Selva, enviou ofício ao juiz Jeferson Schneider, que autorizara a apreensão dos documentos do Exército.

O general anotou: "(...) não é admissível, no atual Estado Democrático de Direito, que uma instituição, constituída e respeitada pelo povo brasileiro, tenha uma de suas organizações militares invadida (...), sob o manto protetor de um mandado de intimação mal interpretado".

Se o monarca fosse Fernando Henrique, o general Monarca estaria redigindo outro tipo de texto. Talvez um ofício em que explicasse por que mantinha sob sua guarda um documento em que se admite "arranhar direitos individuais".

É pena que o outro Cardoso perca a oportunidade de desatar o nó que sonega à sociedade brasileira o sacrossanto direito de conhecer a própria história. Feia ou bonita, foi a história que conseguimos produzir.

PARANÁ

Escavações não encontram ossadas de guerrilheiros Terminaram ontem, sem resultados, as escavações em Nova Aurora (oeste do PR) em busca dos restos mortais de ex- militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Familiares culparam o governo federal pelo fracasso da busca.

Fonte: Folha de São Paulo - 05/Ago/2001

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