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texto para refletir sobre a Alca

Date: Fri, 9 Aug 2002

Alguns elementos para debater a Alca

Euler Conrado

Volta e meia alguns temas são lançados na ordem do dia e são transformados em tabu. Dissociadas da luta cotidiana anticapitalista essas bandeiras se tornam momentos de espetáculo, que apenas contribuem para reforçar dogmas e rebaixamento da luta. Fora FMI, por exemplo, ou a crítica à chamada política "neoliberal". No momento, grita-se muito contra a Alca, essa proposta de "livre comércio" nas Américas. É fundamental que as pessoas discutam essas palavras de ordem antes de saírem por aí levantando bandeira e trocando gato por lebre.

Um dos argumentos que se tem ouvido é o de que, com a implantação da Alca ocorrerá uma "re-colonização" do Brasil e demais países latino-americanos. Outros dizem que vai haver uma destruição do parque industrial local, e que o chamado "capital nacional" vai quebrar, na disputa com os capitais de empresas sediadas nos EUA. Ou ainda, que vai aumentar o desemprego local.

A questão inicial que se coloca é: contra o quê lutamos, camaradas? Se as pessoas estão dispostas a lutar por projetos reformistas, em favor de uma "concorrência mais justa" entre os capitalistas; ou por projetos "nacionais", "soberanos", com certeza têm mais é que transformar esta bandeira da luta contra a Alca como o centro do universo. É utópica, mas tem a ver com a disputa de mercado entre os agentes que personificam a concorrência.

Agora, se pretendemos lutar contra a relação social capitalista, o combate à Alca - e a qualquer outro bloco econômico - muda completamente de foco. Pois as relações capitalistas, com ou sem Alca, estão enraizadas no nosso cotidiano, nas relações que estabelecemos para (re)produzir mercadorias, relações alienadas e não controladas direta e conscientemente por nós próprios.

Acho estranho ouvir dizer que o Brasil perde a soberania e será "re-colonizado". Primeiramente, é preciso saber qual a idéia que fazemos de "soberania". Pode haver "soberania" com os povos escravizados pelo mercado e pelo Estado? Para nós, que compomos a rede anticapitalista de BH, por exemplo, todos os territórios do mundo são territórios ocupados pela força de minorias que usam de exércitos, da burocracia, da mídia e demais mecanismos de manipulação e opressão, para garantir a revalorização cega do dinheiro e do mercado. Ora, como pode haver uma "re-colonização" de um espaço geográfico que nunca deixou de ser um território ocupado?

Mas, a esquerda tradicional adora arrumar argumentos para justificar sua política nacionalista e reformista. Se não tivesse Alca seria qualquer outra coisa: os governos Sarney, FHC, as políticas neoliberais, as privatizações, e por aí vai. Acho que é preciso pensar um pouco mais nessas bandeiras antes de adotá-las - ou recusá-las.

Vejamos: a privatização das estatais mudou o quê na realidade concreta das pessoas subordinadas ao capital (ou seja, todos nós)? Nada. Antes, quando várias empresas estavam nas mãos do Estado - aqui, não importa se o Estado é burguês ou "proletário", pois ele será sempre a manifestação do não controle direto das pessoas sobre suas relações -, o que ocorria? As estatais eram usadas da mesma forma para garantir a revalorização do dinheiro favorecendo aos mesmos que hoje são os proprietários privados formais das antigas estatais. A questão, portanto, não pode ser colocada entre a cruz da privatização e a espada da estatização. É um falso dilema, esse. É preciso que haja, sim, uma apropriação coletiva das fontes de vida pelos oprimidos, passando por cima do Estado, do mercado, dos partidos políticos e quaisquer outras entidades alienadas que queiram substituir o controle direto das relações sociais entre as pessoas. Não precisamos e nem queremos intermediários entre nós para realizar nossas necessidades e vontades.

A questão da Alca se coloca um pouco dentro dessa premissa: lutar contra a Alca numa perspectiva capitalista - que é aquela da "soberania nacional", da defesa do "capital nacional", etc. é contribuir para fortalecer as ilusões nas saídas burguesas.

A esquerda tradicional - e às vezes, infelizmente, mesmo o campo da luta contra o Estado e o mercado embarca na ladainha vazia daquela esquerda - estabelece suas políticas em função da chamada "agenda" imposta pelos círculos capitalistas dominantes, nas suas manobras por garantir a revalorização do dinheiro e seus lucros. Ela procura demarcar terreno dentro do mesmo espaço já estabelecido pelas políticas de conteúdo burguês. Abre-se assim uma disputa no interior da própria esquerda para ver qual corrente vai ser mais radical na forma, já que o conteúdo é o mesmo. Essa disputa, aliás, faz parte da democracia de mercado. Não se questiona o essencial - pelo menos não no agora, no hoje - que são as relações capitalistas voltadas para reproduzir cegamente mais dinheiro, lucro, etc, mas apenas a "melhor" maneira de se inserir na disputa de mercado.

Que importância prática tem para nossa vida se os capitais são nacionais ou internacionais? Se os operários são explorados por capitalistas locais ou por um gringo? Se os trabalhadores vão receber seus salários de escravos em dólar ou em real? Para mim, a diferença essencial é se vamos aceitar esse inferno ou se vamos superar essas relações, construindo relações diretas, não mediadas por dinheiro, pelo mercado, pelo Estado, por políticos e por patrões, não importa a procedência.

Dir-se-á que vai aumentar o desemprego aqui para favorecer o emprego nos EUA. Eis aí outra argumentação rebaixada, reducionista e burguesa! Não lutamos contra o desemprego, mas pelo fim do assalariamento que nos transforma a todos em mercadorias ambulantes, incapazes de controlar diretamente nossas próprias relações. Ainda por cima, segundo aquela lógica, nos colocamos na disputa intercapitalista entre operários nacionais e operários estrangeiros, o que contraria todo discurso internacionalista. Nossa luta, compas, não é contra este ou aquele Estado em particular, ou contra este ou aquele capitalista em particular, mas contra todos eles, contra uma relação social, enfim!

Ah, dirão, mas por agora é preciso arranjar empregos!! Eis aí outra falácia que é preciso ser analisada de perto. Primeiro, quem reduz emprego hoje é a chamada revolução na técnica - a microeletrônica, a informática, etc. Não me parece que queiramos voltar a roda da história e protestar contra as máquinas, não é mesmo? Se a humanidade tivesse o controle direto das fontes de vida - incluindo as máquinas criadas por nós - esse desenvolvimento seria colocado a serviço de todos. Quanto maior nosso tempo liberto da produção, melhor! Participar da luta por mais emprego é, ainda, contribuir para manter a roda-viva da valorização do dinheiro em funcionamento. O que fazer então para resolver o problema da miséria e da fome? Não tenho a solução mágica para oferecer, mas sei que por meio da luta por mais emprego me parece um equívoco enorme. É reforçador do assalariamento escravizador e, ainda por cima, contraria as próprias leis econômicas intrínsecas ao capitalismo, cuja reprodução provoca maior investimento em capital constante (máquinas, técnicas, etc.) e diminui a participação na força de trabalho.

Parece uma sinuca de bico. Um paradoxo insolúvel: o capitalismo, na sua fase atual, não gera mais emprego e a tendência é que haja cada vez mais desemprego em massa. Não se trata apenas de políticas de governos, mas das leis econômicas da concorrência entre os capitalistas para aumentar a produtividade, fazendo com que haja cada vez maior "racionalização" de mão-de-obra. Ou seja, cada vez precisa-se menos de trabalho vivo para produzir mercadorias. E isso é um paradoxo próprio do capitalismo, pois sem mão-de-obra remunerada (salários), quem vai consumir? Eis a crise instalada. E qual deve ser a resposta dos que lutam para por abaixo essa forma estúpida de relação social?

Ora, não cabe aos anticapitalistas tentar resolver esse paradoxo insolúvel - que, aliás, nem os próprios capitalistas, nem tampouco a endeusada "mão invisível" do mercado dão conta de resolver. A nós, me parece, caberia um esforço para superar essa forma invertida de relação social. Tentar trazer essa discussão para a realidade concreta das pessoas e buscar solução coletiva, para além do mercado e do Estado. Afinal, compas, as terras estão por aí, os prédios, as máquinas, a água, as fontes de energia - tudo isso que nós próprios fizemos e colocamos em movimento está por aí. Não se sabe porque ainda se insiste tanto em fazer rodeios e continuar reforçando e participando da roda viva da revalorização do dinheiro e do mercado. O que precisamos é inverter a forma de vida que criamos inconscientemente - e a qual se volta o tempo todo contra nós.

Reparem o que acontece hoje com a Argentina - e que, de resto, já aconteceu e/ou acontece com dezenas de países em todos os continentes. É impressionante a facilidade com que as pessoas creditam aquilo simplesmente à corrupção ou às políticas neoliberais, sem questionar as raízes mesmas das relações capitalistas, no seu desenvolvimento desigual e combinado. Praticamente todos os países que estão fora daquele pequeno e seleto grupo de países ricos estão em situação semelhante. E mesmo os países "desenvolvidos" se encontram mergulhados em enorme desemprego, além da vida alienada que é comum a qualquer Estado "nacional". E qual tem sido a análise da esquerda tradicional? Para esta, é preciso que haja uma mudança nos rumos políticos, a partir do Estado, para que a economia "volte a crescer", gerando empregos, etc. e tal. Ora, meus amigos, é preciso dizer as coisas pelo nome: essa esquerda está preocupada em arranjar solução - que não existe - para minimizar as conseqüências da revalorização do dinheiro e garantir seu próprio espaço privilegiado nos parlamentos e nas hierarquias burguesas. E só. Parece-me que a perspectiva daqueles que não se deixaram envolver por essa promessa vazia e situam-se no campo da luta radical contra o Estado e o mercado é bem outra.

É preciso que as soluções sejam encontradas na realidade concreta e que elas estejam vinculadas - desde o agora, e não para o futuro -, com a construção de outras relações sociais, para além do capitalismo. Ou seja, é preciso que nossa recusa radical ao Estado e ao mercado esteja presente nos nossos atos e que a gente procure transformar nossas palavras em prática cotidiana. Não estamos atrás de soluções que nos mantenham presos ao universo do dinheiro. Penso que é preciso articular saídas que expressem essa nossa recusa coletiva e refletida ao dinheiro, ao mercado, ao Estado, ao capital, enfim. É assim que se rompe, no discurso e na prática, com a agenda burguesa e com suas políticas voltadas para dar uma sobrevida ao terror capitalista.

Há muitas lutas de resistência por aí, compas. Contribuir para que essas lutas assumam uma perspectiva autônoma, para além do mercado e do dinheiro, deveria figurar entre nossas atividades prioritárias. E isso não parece que tenha muito a ver com essas palavras de ordem do tipo "Fora Alca", e outras. Isso tem mais a ver com o velho nacionalismo populista da esquerda tradicional - e que tanto estrago causou e causa, semeando ilusões entre as pessoas que lutam.


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