A rebelião popular que sacode a Bolívia desde 15 de setembro, quando os camponeses da área do Lago Titicaca iniciaram o bloqueio das estradas em protesto contra a exportação de gás para os Estados Unidos, intensificada nos últimos dias com as combativas ações nas ruas de La Paz e outras cidades do país, é um marcante acontecimento político de enorme significado para as forças progressistas da América Latina. Não por acaso, ganhou ampla repercussão em todo o mundo.
No momento em que escrevemos estas notas, estamos longe, muito longe do desfecho da situação. Na frente interna, Sanchez de Lozada, agora desmascarado como tiranete e verdugo, faz piruetas para se aferrar ao poder. Há não muito tempo, o farsante buscava credenciamento junto às forças de esquerda do continente em fóruns multilaterais de partidos políticos. No plano externo, mobilizam-se as chancelarias. O imperialismo norte-americano aciona os seus mecanismos diplomáticos e começa a proferir ameaças: "Não toleraremos nenhuma interrupção da ordem constitucional e não apoiaremos nenhum regime que se instaure por meios não democráticos na Bolívia", diz um comunicado do Departamento de Estado. Enquanto isso, o embaixador norte-americano em La Paz se movimenta com desenvoltura visando a encontrar uma solução que assegure a permanência do seu acólito no poder. Mas não se descarta, por enquanto, a decretação do Estado de Sítio, a suspensão dos direitos individuais e das liberdades democráticas fundamentais, ou seja, o recurso a medidas não democráticas.
A crise boliviana contém os ingredientes de uma situação que chegou ao limite. Somente em casos extremos, de deterioração da situação econômica, degradação da vida social e esgotamento do quadro político normal, chega-se a uma situação semelhante. O centro da política de Sanchez de Lozada tem sido o arrocho sobre o povo combinado com um descarado entreguismo. Em determinadas circunstâncias a fórmula é fatal. Sua aplicação cobra um impagável preço em sangue, suor e lágrimas de um povo já historicamente depauperado pela sucessão de governos anti-nacionais e antipopulares.
Em face da inevitável ira popular os governantes comprometidos com semelhantes orientações se despem das vestes de democratas e se revelam por inteiro como sanguinários repressores. É por isso que, diversos em suas particularidades, os acontecimentos em curso na Bolívia, carregam a mesma essência de violência política contra-revolucionária acionada pelo governo das forças conservadoras. Os tanques nas ruas, a repressão sangrenta, o verdadeiro massacre que já resultou na morte de dezenas de pessoas são a revelação eloqüente dos limites institucionais dos regimes conservadores vigentes em nosso continente. E não me refiro aos aspectos doutrinários do "caráter de classe" do Estado, o que por suposto está presente, mas se trata evidentemente de outra discussão. O que ponho em tela de juízo são os limites da situação política em estrito senso, quando esta serve de sustentáculo a políticas que não têm qualquer liame com os interesses nacionais e as expectativas populares. Na Bolívia, além disso, a política de arrocho e o entreguismo se entrelaçaram com uma crise de legitimidade, que vem da precária maioria obtida por Sanchez de Lozada no pleito presidencial, em que foi escancarada e abusiva a ingerência norte-americana.
Para governar, o presidente constituiu uma megacoligação juntando o que há de pior na constelação política do país e adotou um programa econômico patrocinado pelos Estados Unidos. Remeto o leitor para o lúcido artigo de Marcos Domich, primeiro-secretário do Partido Comunista da Bolívia, publicado ontem no sítio resistir.info . Entre outras coisas, o dirigente comunista boliviano revela o que está por trás da chamada Lei de Hidrocarbonetos e da decisão de exportar gás para os Estados Unidos: "Na geopolítica ianque, a Bolívia tem um lugar marcado - ser fonte de hidrocarbonetos, colmatar a fome de gás que tem a Califórnia, a quinta economia mundial, segundo cálculo de peritos. Conclusão: possuir 1.614 bilhões de metros cúbicos de gás não só é fonte de esperança como também de temores bem fundamentados, sabendo-se das ambições e da falta de escrúpulos de Bush e do seu petro-poder".
A sangrenta repressão ao povo cobra alto preço em isolamento político ao governo de Sanchez de Lozada. Claramente suas posições claudicam. A megacoligação se esboroou, multiplicam-se as defecções na base governista, de que é exemplo maior o rompimento do vice-presidente com o titular. Predomina a incerteza sobre a durabilidade do mandato presidencial e todas as forças políticas são assaltadas pela sensação de instabilidade. Até mesmo o alto comando militar que acionou as armas contra o povo dá sinais de divisão em suas fileiras e de lealdade relativa ao presidente.
Num quadro como este, faz todo o sentido a proposta das forças progressistas do país, que Vermelho publica em primeira mão de que perante a renúncia do presidente Lozada - exigência das multidões sublevadas - o vice-presidente assuma constitucionalmente o poder, com o compromisso de formar um governo provisório que em prazo hábil convoque uma Assembléia Constituinte para reorganizar o país. É a única solução para interromper o banho de sangue e abrir caminho à reconstrução da democracia e da soberania nacional na Bolívia.
17/Out/03
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