E acabou não só o quinto, mas para todos os outros daqui para frente. Acabou como espaço possível de apropriação pelos movimentos sociais que podiam fazer sua articulação por ali. Esta é uma avaliação que tento fazer depois de participar da quinta edição e das três primeiras, em Porto Alegre.
Desde o início, desde sua primeira edição, a proposta do Fórum Social Mundial era claramente fazer uma reunião de cúpula de ONGs, partidos políticos e de alguns movimentos sociais que trocavam algumas figurinhas. Então, o ATTAC, o Greenpeace, o PT, o MST (sua direção), entre outros se reuniam uma vez por ano, na mesma data em que figurões do grande empresariado internacional se reuniam em Davos. Daí, organizavam palestras, mesas-redondas, etc, em que "apresentavam" suas propostas e análises da atual situação mundial para quem estivesse no FSM. Mas a grande questão é que outras coisas aconteciam...
Os movimentos sociais de todo o mundo perceberam que ali era um importante lugar e momento para fazer articulações, contatos, trocas de experiências, reuniões. E conseguiram, em uma importante medida, se apropriar daquele espaço e transformá-lo não somente em um espaço das ONGs, dos partidos políticos, e das direções dos movimentos sociais, mas em um espaço em que se poderia tratar das ações e dos movimentos dos movimentos sociais de todo o mundo. Assim, se caminhava pelo espaço do Fórum, ou pelo Acampamento da Juventude, e se discutia a política dos movimentos, se conhecia e se trocava experiência, se fazia articulações e contatos que durariam por muitos anos (como tenho certeza que muitos duraram). Nada a ver com a proposta política do Fórum ou com sua programação oficial, mas nas "vias obscuras" dos corredores, da mesa de almoço, do passeio e encontros ocasionais com os movimentos sociais. Era daí que saía o que realmente importava do Fórum Social Mundial. Pelas exposições de materiais; de reuniões marcadas na hora; de trocas de endereços, e-mails, telefones; era aí que acontecia o que importava para o avanço das lutas sociais. Quando um grupo resolvia fazer alguma ação conjunta com outro grupo; quando movimentos se descobriam com reivindicações comuns; quando estratégias de luta eram trocadas; quando análises da situação de cada país eram feitas diretamente entre aqueles que viviam na luta por "um outro mundo". Quando movimentos camponeses se encontravam; quando grupos de mídia independente trocavam experiências; quando os sem-teto se conheciam para continuar na luta; quando os jovens relatavam sobre seus squats ou sobre as lutas na escola ou universidade.
Ao contrário da proposta oficial do FSM, que era justamente permitir que as grandes interpretações e as "políticas propositivas" do movimento "antiglobalização" aparececem para o mundo. Só que o problema é que neste movimento "antiglobalização" as "políticas propositivas" e as "interpretações" da situação atual não saíam de grandes debates nem de grandes intelectuais, mas, ao contrário, saía da prática daqueles movimentos sociais que tomaram Chiapas, que botaram na rua presidentes na Argentina, que pararam a cidade de Seattle, Gênova, que pararam a Bolívia pelo gás e pela água, que ocupa prédios em São Paulo ou terras latifundiárias, que consegue o passe-livre e luta pela diminuição dos preços nos transportes coletivos. É dessa prática e dos contatos e articulações entre estas práticas que saem as propostas políticas. O FSM surgiu como o lugar onde o "movimento antiglobalização" poderia formular suas propostas para este "outro mundo possível". Como se ali, nos próprios protestos, nos próprios movimentos sociais, não se estivesse construindo as propostas e este "outro mundo possível". A cooptação deste movimento pelos partidos políticos e por certas ONGs no FSM foi inicialmente fracassada pela própria articulação destes diferentes atores, que se utilizava e combatia, através da prática e não somente através de palavras de ordem, o que o FSM propunha. E o que ele propunha era justamente ser o "porta-voz" único (ou "unificado") autoproclamado de tudo aquilo que rejeitou as políticas neoliberais de diferentes maneiras nos últimos 10 anos.
Agora, no V Fórum Social Mundial, várias coisas aconteceram, tanto na estrutura do FSM quanto na conjuntura política nacional e internacional, que fizeram com que algo se modificasse no que acontecia de fato ali dentro. Não que a proposta do FSM tenha mudado substancialmente (aliás, duvido que tenha mudado alguma vírgula). A questão é que, por um ou vários motivos, aquela apropriação que os movimentos sociais conseguiam fazer não mais foi feita. A gente andava pelo espaço do Fórum ou do Acampamento e não conhecia gente nova, de novos ou velhos movimentos sociais, parecia simplesmente que eles não estavam lá. Mesmo o MST, parecia que estava lá apenas vendendo seus produtos orgânicos. Parecia, isso sim, que a proposta do FSM tinha de fato se consolidado: o V FSM foi, de fato, um grande encontro de intelectuais, estudiosos, pesquisadores e estudantes sobre os movimentos sociais e da situação "sócio-política-econômica" do mundo. Aliás, mais tarde, os "estudantes" vão merecer um parágrafo a parte. Todos estavam ali para discutir sobre seu objeto de pesquisa (seja os cocaleros, o MST, os piqueteros, os palestinos, os iraquianos, etc) e quase dizer o que eles tinham que fazer. Todos passaram ali cinco dias analisando e ouvindo o Saramago, o Galeano, o Chávez e o Lula e nada foi articulado para frente. E isso aconteceu justamente porque os movimentos sociais não estavam ali presentes, ou, se estavam, estavam para dar seu "depoimento" ou "testemunho". Enquanto movimentos sociais que ali estavam para fazer articulações e trocar experiências entre si, diretamente, pouco havia - ou, pelo menos, pouco vi. Somente em situações muito pontuais e específicas e que, por ter vivido tão poucas para estes cinco dias "dedicados" a isso, não valem a pena ser mencionados. Nós, por algum motivo, não conseguimos nos apropriar e ignorar a proposta oficial do Fórum e fazer daquele espaço um lugar de contatos para o futuro.
Assim, a eleição do Lula, e do presidente do Uruguai (que me foge o nome agora), a ascenção de Hugo Chávez, etc. tudo isto parece ter a ver com este caráter do V FSM. A grande esperança de um "outro mundo é possível" (para usar a frase consagrada no Fórum) foi cooptada, e os FSMs teve um papel nisso tudo; foi tirada das ruas para as grandes salas de reuniões e pros gabinetes de governo. Por que isto se deu é a grande questão: fracassos parciais dos protestos com o avanço do neoliberalismo em mais boa parte do mundo; Bush e sua máquina de guerra ignorando protesto massivos; a adoção por parte de diversos governos do discurso social; entre outros. Mas fazer este tipo de análise, apesar de muito interessante, nos demoraria em parágrafos imensos e numerosos. Tentar analisar como o Fórum, através de transformações de sua estrutura, pôde neutralizar os movimento sociais pode ser mais interessante, além de mais curto.
Primeiramente, a apropriação do PT e, agora, do governo federal, da pauta e da organização do Fórum foi fundamental para que aquela possibilidade de apropriação pelos movimentos sociais fosse frustrada. Tudo (ou, pelo menos, quase tudo) passava pelas mãos do PT ou seus partidos aliados. Milhares de militantes com a camisa "100% Lula" circulavam e muitos dos ministros estavam lá dando sua palestra ou participando de uma mesa-redonda. Ainda que desde o primeiro isso já acontecia, com o PT no governo federal, isso foi ainda mais forte. Depois, uma estrutura física de eventos em que muito se andava e pouco se discutia e se conhecia pelos "corredores" contribuiu para que os debates ficassem concentrados somente nos espaços determinados para eles, ou seja, dentro das tendas com programação oficial - debates mais "fora do controle" ficavam mais difíceis. E isso, obviamente, permite um maior controle pelos organizadores do FSM do que é dito e do que não é dito e articulado naqueles dias. E mais um, o Acampamento Intercontinental da Juventude, que, até mesmo por ter certos conflitos com a organização oficial do Fórum, vai merecer um parágrafo a parte.
O Acampamento da Juventude em 2005 foi um verdadeiro caos. Estupros, roubos, 40 mil pessoas, falta de estrutura - tudo o que já tinha nos outros, mas desta vez, mais grave. Um grande encontro de jovens do Brasil e do mundo inteiro prontos para o que der e vier. Só para ficar claro: nada contra os jovens (aliás, isto seria um suicídio), mas que tipo atitude eles tiveram no Acampamento. O AIJ foi uma grande festa (e só de passagem, uma festa muito ruim) sem nenhum tipo de discussão política, em nenhum lugar ou momento destes cinco dias (novamente excetuando momentos muito pontuais). 40 mil pessoas foram lá acampar para se divertir, ao invés de discutir política. E não vamos tentar colocar a "culpa" da falta de seriedade nestes que vieram fazer turismo em Porto Alegre - estes vão fazer turismo em qualquer lugar que proporcione isto a eles. E o Acampamento proporcionou isto a eles. Com uma propaganda de "40 mil jovens bonitos e inteligentes de todo o mundo", qualquer um que quer fazer sua viagem de férias barata vai pra Porto Alegre. A discussão política, os movimentos sociais ficaram em quinto, sexto, sétimo, plano. Os movimentos sociais definitivamente não estavam presentes no Acampamento. Na verdade, foi um grande encontro de estudantes; as pessoas se apresentavam dizendo qual curso e de qual universidade eram. E novamente, a "culpa" não é deles, mas da organização do acampamento que preferiu fazer uma estrutura de encontro de estudantes e jovens do que de movimentos sociais. E isto, é óbvio, tem toda uma relação com aquele caráter de "estudo" sobre os movimentos sociais que o Fórum tem - são jovens e querem se divertir, mas que focam seus estudos nos movimentos sociais. Não importa dizer que o acampamento tem uma proposta diferente do Fórum Social Mundial, tem que levar essa proposta a cabo. Então, e pra mim isso é claro, a rigor, a proposta do acampamento só difere da do FSM na faixa etária.
E além disso tem toda a questão do discurso autogestionário do Acampamento. Como se autogestão se construísse jogando 40 mil pessoas num parque superlotado e pedindo para que elas se organizem. Isto é, no mínimo, ridículo. E se as coisas não funcionam, ainda colocam a culpa nos acampados. Autogestão não se constrói assim: começa no dia 26 e termina no dia 31 de janeiro. Autogestão é um processo. Mas acho que isso da autogestão fica para outra vez. O que importa agora é dizer que somente anunciar para as pessoas que elas tem que se responsabilizar durante cinco dias não adianta; ao contrário, autogestão é todos participarem ativamente do que vão viver - e construir isto com 40 mil pessoas que nunca se viram e durante cinco dias é, no minímo, ingenuidade. Não estou dizendo para que as coisas sejam organizadas de forma autoritária, mas para que as coisas sejam organizadas de forma factível, e não somente no discurso.
Não quero que o FSM volte a ser "como antes". Nunca tive nenhum apreço pelo FSM em si. Não me importa o FSM - tenho certeza de que, desde o primeiro, a proposta do Fórum era ruim e tudo que relatei já estava presente em certa medida, só que neste quinto, tudo se agudizou. O que me importa somos nós, os movimentos sociais, o que estamos fazendo. E se estamos fazendo algo, tenho a certeza de que vamos arranjar outras maneiras de nos encontrar. Por isso, aquela frase dos Confeiteiros sem Fronteiras quando da tortada no José Genuíno em 2003 - "O Lula não representa a gente em Davos, as pessoas nas ruas representam a gente em Davos" - é tão significativa que gostaria de terminar com ela. O que importa não é o Fórum, mas as pessoas nas ruas!
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